“A coisa mais importante para um banco central é ter dúvida. Banco central que não tem dúvida é uma tragédia.” (Delfim Netto)
Após um período de pandemia, o mundo se preparava para um rebound econômico em 2022, mesmo considerando que o Covid-19 causou alguns choques de oferta importantes em cadeias de suprimentos, provocando uma alta na inflação mundial. O ano de 2022, não obstante, trouxe um novo choque causado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, impactando preços de energia e alimentos em todo o mundo, num momento de revisão baixista dos indicadores de crescimento no mundo todo. Esses dois choques combinados a um cenário latente de desaceleração trouxeram o medo do mundo viver um período de estagflação, tendo como pano de fundo o paralelo pertinente aos acontecimentos da década de 70.
O choque do petróleo dos anos 70 acelerou os índices de preços em todo o mundo, mesmo em países que estavam praticamente estagnados do ponto de vista econômico. Os economistas Alan Blinder e Jeremy Rudd argumentam, num paper do NBER de 2008, que a estagflação dos anos 70 teve como principal causa os aumentos significativos de preços de energia e alimentos. Alguma semelhança com a situação atual?
1 de 1 — Foto: Pixabay
— Foto: Pixabay
Mesmo antes da eclosão da guerra na Ucrânia, os preços em muitos países (incluindo zona do Euro, EUA e Reino Unido) atingiram níveis bastante elevados, fruto de um lado de disrupções nas cadeias globais de suprimentos, e do outro do impulso na demanda por bens e serviços resultante das políticas fiscal e monetária extremamente acomodatícias, herdadas do período de pandemia. A invasão da Ucrânia alimentou e exacerbou grande parte desses efeitos na medida em que atingiu seriamente os preços de petróleo, gás natural, trigo e especialmente fertilizantes, que são base de custo para inúmeras outras commodities agrícolas, como milho e soja.
Os bancos centrais, por sua vez, seguindo os preceitos básicos de combate a inflação, passaram a apertar as condições monetárias em inúmeros países (destaque para o BC brasileiro), reduzindo assim as perspectivas de crescimento econômico. O consenso para o crescimento mundial se reduziu para pouco mais de 3%, comparado a mais de 4% em Janeiro/22, enquanto que as projeções de inflação global no período aumentaram de 4% para 6,2%. Alguns importantes economistas advogam que a inflação atual é transitória e por isso os bancos centrais devem ser pacientes no aperto monetário, mesmo que isso signifique conviver com uma taxa de inflação mais alta por um certo período. A corrente mais hawkish, por sua vez, defende uma atuação forte e inequívoca dos bancos centrais, sob o risco de repetirmos a situação do final da década de 70 em que o remédio aplicado tardiamente teve que ser mais forte, mais longo e com custos econômicos muito maiores.
O fato é que o medo de estagflação está presente mais do que nunca no debate atual. Citando novamente o paper de Blinder e Rudd, em que argumentam que a grande causa da estagflação foram os choques simultâneos de energia e alimentos, parece que o cenário atual guarda alguma semelhança com a década de 70. Sem dúvida, a amplitude dos choques atuais é muito menor; no entanto, hoje, há diferenças relevantes para a propagação e sustentação dos seus efeitos. Ainda que os salários não sejam mais indexados à inflação, a situação extremamente apertada do mercado de trabalho nos EUA e em alguns países da Europa traz um combustível importante para o aumento de preços. A alavancagem dos setores publico e privado é historicamente elevada como proporção do PIB, o que faz os bancos centrais terem que ser mais cuidadosos no aperto monetário para não causar uma crise financeira nos mercados de crédito e ações.
Estagflação é um fenômeno temido por todos os formuladores de políticas do mundo por uma razão muito simples: é muito difícil revertê-la uma vez iniciada. As distorções que ela causa produzem efeitos econômicos severos, sentidos a longo prazo, especialmente para empresas, para a classe média e para famílias de baixa renda.
O tempo dirá se estamos diante de um risco real para a economia global, se os efeitos serão transitórios ou se teremos desafios econômicos mais perenes. A boa notícia para o Brasil é que hoje temos um BC independente, que pode fazer seu trabalho sem interferência política, e fundamentos de contas externas (seja balança comercial, seja balanço de transações correntes, seja a posição de credor externo líquido) muito diferentes do que tínhamos na década de 70. Não obstante, há uma enorme incerteza no cenário, o que não é de todo mau…como uma vez afirmou o ex-ministro Delfim Netto: “A coisa mais importante para um banco central é ter dúvida. Banco central que não tem dúvida é uma tragédia”. E o que não nos falta hoje é dúvida…
* Edison Ticle, CFO da Minerva Foods, é conselheiro independente do Grupo Soma, Aeris e TC Traders Club. É mestre em Finanças e Economia pela FGV-SP, e pós-graduado em Advanced Management pela Harvard Business School